Armas, religião e ordem pública. Eis o que Trump pede a Amy Coney Barrett, a próxima juíza do Supremo Tribunal
Trump confirmou a escolha de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal, sábado, na Casa Branca
Chip Somodevilla/getty images
Presidente apresentou este sábado a sua escolha para substituir Ruth Bader Ginsburg, uma magistrada católica que tem apoiado decisões judiciais alinhadas com as posições políticas do chefe de Estado. Com 48 anos, será o membro mais jovem do Supremo e consolidará uma maioria conservadora com potencial para durar
O caderno de encargos de Donald Trump ao nomear Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal não podia ser mais claro. O Presidente confia que a juíza contribua para “a sobrevivência da nossa Segunda Adenda [à Constituição, que consagra o direito ao porte de arma], a nossa liberdade religiosa, a nossa segurança pública e muito mais”. Trump e Barrett apareceram juntos, sábado à noite, numa breve cerimónia de apresentação na Casa Branca.
A seu ver não “não há ninguém melhor do que Amy Coney Barrett para cumprir tal ensejo e substituir Ruth Bader Ginsburg, falecida no passado dia 18, no painel de nove magistrados que compõe a mais alta instância judicial dos Estados Unidos. “Temos de preservar o nosso precioso legado enquanto nação de leis”, acrescentou o chefe de Estado, que tem baseado a campanha para a reeleição numa mensagem de “lei e ordem”. Na plateia, junto à primeira-dama Melania Trump e dezenas de convidados (sem distanciamento social e quase todos sem máscara), estavam o marido e os sete filhos de Barrett.
Barrett homenageou Ginsburg ao prometer “recordar quem veio antes de mim”. Invocou ainda Antonin Scalia, juiz do Supremo que morreu em 2016, de quem foi assistente e que descreveu como um “mentor”. “Estes dois grandes americanos demonstraram que as discussões, mesmo sobre assuntos de grande consequência, não têm de destruir os afetos”, afirmou a juíza, numa alusão à amizade entre a progressista Ginsburg e o ultraconservador Scalia. Talvez para sossegar os que temem a influência das suas opiniões pessoais nas decisões do Supremo, defendeu também que “os juízes não são fazedores de política”.
A pressa do Presidente em preencher a vaga de Ginsburg no Supremo não o impediu de cumprir formalidades. Trump esperou pelo enterro da magistrada progressista, sexta-feira no cemitério nacional de Arlington, antes de indigitar a sua sucessora. Barrett é a terceira pessoa que o 45.º Presidente eleva ao Supremo, depois de Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh.
Segundo o jornal “The New York Times”, Trump teve dois encontros com a juíza, segunda e terça-feira, sem ter entrevistado mais candidatos. Nem sequer Barbara Lagoa, outra magistrada que estava no radar mediático e que, por ser de origem cubana e oriunda da Florida, poderia favorecer as perspetivas eleitorais de Trump nesse estado decisivo para as presidenciais de 3 de novembro.
O discurso de Trump tem-se baseado na manutenção da ordem, após meses de agitação nas ruas de muitos estados, com multidões a exigir igualdade e a combater o racismo. As mortes dos afroamericanos Breonna Taylor e, sobretudo, George Floyd às mãos da polícia geraram revolta.
“Guardada” há três anos
Amy Vivian Coney Barrett é juíza desde 2017 e foi colocada por Trump no Tribunal da Relação do 7.º Circuito, que tem jurisdição sobre os estados de Illinois, Indiana e Wisconsin. Católica, mãe de sete filhos (dois adotados), apreciada pelos conservadores e em especial pelo movimento antiaborto, está na lista do chefe de Estado para o Supremo há alguns anos. Segundo “The New York Times”, Trump terá mesmo dito há dois anos que estava a “guardá-la para Ginsburg”, isto é, para quando a octogenária deixasse a instituição. Ponderou nomear Barrett após a jubilação do juiz Anthony Kennedy, em 2018, mas acabou por ser Kavanaugh o contemplado.
A mulher de Donald Trump e a família de Amy Coney Barrett assistiram à cerimónia
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Barrett foi assistente e discípula de Antonin Scalia, juiz do Supremo falecido em 2016, cujo perfil muito conservador não o impediu de ser amigo de Ginsburg. “Eu não disse que era ela, mas ela é extraordinária”, respondeu Trump aos jornalistas que o inquiriam, sexta-feira, sobre quem iria nomear.
Se o Senado a ratificar, Barrett será o 115.º membro do Supremo na História, a quinta mulher, depois de Sanda Day O’Connor, Ruth Bader Ginsburg e as atuais juízas Sonia Sotomayor e Elena Kagan. Em 2005 Bush tentou nomear Harriet Miers, mas falhou e acabou por trocá-la por um homem.
Nascida em Nova Orleães (Luisiana), primeira de sete filhos de um advogado e de uma doméstica, estudou literatura inglesa e direito, tendo-se formado na faculdade de Notre Dame. Ensinou ali e também na Universidade George Washington. Será a benjamina do Supremo, onde potencialmente passará largas décadas.
Durante a confirmação no Senado para o posto que hoje ocupa, Barrett foi duramente interrogada pelos senadores do Partido Democrata. Queriam saber se o seu catolicismo iria afetar a imparcialidade exigida a um juiz. A inquirida assegurou que não, mas o efeito das audições junto da opinião pública católica foi de reforço da sua imagem, que não tardou a surgir em canecas. Associações de defesa dos homossexuais expressaram inquietação.
Amy Barrett e o marido, Jesse, antigo procurador federal, pertencem à comunidade cristã People of Praise, caracterizada por adotar práticas pentecostais e confiar em profecias e cura divina. Defendeu perante alunos, em Notre Dame, que um advogado será melhor profissional se souber que “o propósito da vida não é ser advogado, mas conhecer, amar e servir Deus”.
Uma maioria para durar
A consumar-se a ascensão de Barett ao Supremo, passará a haver maioria conservadora de 6-3 entre os nove membros do tribunal. O presidente da instituição, John Roberts, que não raro oscila no sentido de voto e tem propiciado vitórias ao bloco mais progressista, deixará de ser tão crucial. Isto apesar de não haver alinhamento permanente nem divisão fixa entre os magistrados mais à direita e mais à esquerda no Tribunal. Gorsuch e Kavanaugh, ambos escolhas de Trump, já apoiaram decisões contrárias à vontade do Presidente.
A natureza vitalícia da nomeação para o Supremo significa, ainda assim, que qualquer escolha molda o tribunal muito para lá do mandato presidencial em curso. Os liberais temem que o reforço do bloco conservador leve à revisão da sentença Roe vs. Wade, que em 1973 abriu portas à despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Manifestação a favor da nomeação de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal dos EUA, a 24 de setembro de 2020 em Jacksonville, Florida
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Barrett defende que “a vida começa na conceção” e que a jurisprudência do alto tribunal não é vínculo inamovível. Não obstante, afirmou um dia sobre Roe vs. Wade que “o elemento fundamental, de a mulher ter o direito de optar pelo aborto, provavelmente permanecerá”, admitindo que haja litigância sobre a forma de financiar as interrupções de gravidezes. A juíza apoia a visão da Igreja Católica sobre a sexualidade e a definição de casamento como união entre um homem e uma mulher, segundo uma carta aberta que subscreveu em 2015.
A putativa futura juíza do Supremo partilha com o seu desaparecido mestre Scalia a visão “originalista” da Constituição dos Estados Unidos. São adeptos de uma interpretação literal da lei, e não ditada pela leitura do contexto em que foi redigida ou tendo em conta a evolução histórica. O currículo de Barrett inclui decisões favoráveis a uma política dura na imigração, à licença de porte de armas e à limitação das buscas policiais, além de críticas públicas à reforma da saúde do antigo Presidente Barack Obama (Obamacare), que Trump tem contestado judicialmente. Barrett contestou o parecer do presidente do Supremo, John Roberts, quando o tribunal ditou a constitucionalidade daquela reforma.
Uma batalha na guerra pela Casa Branca
O momento em que se abriu a vaga no Supremo, por falecimento de Ginsburg, torna a sua sucessão crucial na disputa pela Casa Branca. Ao preferir Barrett, Trump agradará ao eleitorado religioso, numa altura em que as sondagens mostram Joe Biden à frente em estados fulcrais. Mas os temores do eleitorado liberal podem também levar a uma mobilização eleitoral favorável ao ex-vice-presidente democrata.
A proximidade das eleições explica em parte a celeridade que os republicamos quiseram imprimir ao processo. É vontade do Presidente que Barrett seja confirmada antes de 3 de novembro, dia da ida às urnas, sinal da relevância que o Supremo irá adquirir caso o resultado das presidenciais seja contestado. Há 20 anos foi o alto tribunal a declarar a vitória de George W. Bush sobre Al Gore. Este ano, com a pandemia a implicar grande número de votos pelo correio; regras e prazos diferentes entre estados para exercê-lo; e um chefe de Estado a pré-anunciar fraude eleitoral e a negar-se a prometer transição pacífica em caso de derrota, a conclusão pode chegar muitos depois de os americanos votarem e exigir intervenção judicial.
O Politico.com prevê que as audições de Barrett no Senado comecem por volta de 12 de outubro. A votação exige apenas maioria simples, que o Partido Republicano detém, mas por escassa margem (soma 53 senadores). Se houvesse dissidências a confirmação poderia estar em causa, mas até agora só duas senadoras admitiram votar contra.
Susan Collins e Lisa Murkowski estão renitentes em apoiar a rapidez do processo, por coerência com o que sucedeu há quatro anos. Falecido Scalia de repente, em fevereiro de 2016, Obama quis nomear o juiz Merrick Garland para substituí-lo, mas os republicanos impediram-no, com o argumento de que no último ano de mandato o Presidente devia deixar essa prerrogativa ao seu sucessor, a eleger dali a nove meses.
Agora, reivindica o Partido Democrata, deviam fazer o mesmo e esperar pela eleição, que está bem mais próxima do que quando Obama escolheu Garland. Nisto acompanham-nos 62% dos cidadãos, segundo um estudo de opinião divulgado pela cadeia televisiva ABC. Contudo, Trump e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, cedo excluíram tal hipótese. Se não houver mais republicanos a furar a disciplina de voto, Barrett será juíza do Supremo.
McConnell sublinha, como outros senadores (incluindo Mitt Romney, o único que em 2019 votou a favor da destituição de Trump, e em quem os democratas depositavam esperanças agora), que a diferença entre 2016 e 2020 é que agora o Partido Republicano controla o Senado e a Casa Branca, o que não era o caso do Partido Democrata há quatro anos. Por outro lado, fazer girar os holofotes para o Supremo distrai de notícias mais negativas, como os resultados da pandemia a nível de mortes e de impacto económico.