"Morre uma escritora extraordinária. Para mim, a maior escritora de sempre da Língua Portuguesa. Está acima de Clarice Lispector, que também considero uma escritora absolutamente incrível.
Clarice Lispector e Agustina Bessa-Luís entram num mundo diferente, mas Agustina consegue entrar na literatura de uma outra forma e com uma intensidade extraordinária.
Sempre li muito Agustina. Leio-a de uma forma um pouco louca que tem muito a ver com a forma como ela escrevia. Tenho três ou quatro livros abertos e vou passando de um para outro, sem me preocupar com a narrativa ou a questão da história ou das personagens, porque o que acho extraordinário e fundamental na Agustina é o que ela vai dizendo e ela vai dizendo sempre coisas impressionantes. Tem uma perversidade que nestes tempos é bom lembrar, porque é uma forma de olhar para as coisas em que as abre ao meio sem piedade de nada nem de ninguém. Ataca os ricos e destrói os ricos, ataca a classe média e destrói a classe média, por exemplo na 'Sibila', em que fala dos funcionários públicos como uma raça "extra bíblica" e só isto é extraordinário.
Depois destrói os pobres, os homens, as mulheres casadas e não casadas, destrói os heróis, os cobardes e os não cobardes. O que é interessante é que destrói no sentido de dar a conhecer. Como se as suas frases abrissem um mecanismo para tentar perceber como é que funciona uma máquina, ou uma pessoa lá dentro. Não vejo nada de semelhante em termos literários. É realmente uma extraterrestre com uma espécie de linguagem mágica.
Em Agustina Bessa-Luís a luta não é bem de classes, a luta é entre indivíduos. Não é uma luta física é uma luta, quase sempre, de linguagem. Sobe numa espécie de hierarquia da cidade ou da casa ou do ambiente rural e as pessoas sobem e descem de acordo com a sua linguagem. No limite até na qualidade dos seus silêncios. É quase sempre uma escrita que obriga a parar. Uma escrita muito da frase, onde a frase de repente ganha uma potência quase autónoma. Isto a mim agrada-me muito. A ideia de que uma frase sozinha pode fazer-nos pensar e, no limite, quase mudar de vida.
"Escrevi o prefácio para 'A Sibila' um pouco por escolha simbólica. É o livro que provoca uma fenda. Foi escrito em 1954, e marca um antes e um depois. É incrível ver que 'A Sibila' tem quase 70 anos. Fala-se muito dele, o que é até injusto, porque há uma quantidade de outros livros extraordinários, onde ela foi apurando essa densidade.
"Por estar dentro do meu bunker a escrever, por estar fechado, é-me necessário voltar a dar atenção aos autores.
Escrevi esse prefácio no contexto de algo que me parece importante e que é o escritor estar atento e valorizar os escritores de outras gerações. É quase uma responsabilidade fazer com que os autores não desapareçam do mundo dos leitores. Agustina devia ser muito mais lida. É muito injusto a pouco atenção que lhe é dada. Devia-se colocar a obra em movimento."
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