Cultura

O dia em que o irmão de Teixeira de Pascoaes foi ameaçado com duas bordoadas: Agustina por António Feijó

O dia em que o irmão de Teixeira de Pascoaes foi ameaçado com duas bordoadas: Agustina por António Feijó
Rui Ochôa

Investigador e professor na Faculdade de Letras de Lisboa, António Feijó explica como Agustina era simultaneamente admirativa mas também agressiva. A escritor morreu esta segunda-feira - tinha 96 anos. António Feijó escreveu o prefácio de “O Susto”, livro de Agustina reeditado em 2017 pela Relógio D’Água

Depoimento recolhido por Ana Soromenho

O prefácio que escolhi fazer para o livro "O Susto" teve que ver com um aspeto que para mim é muito interessante. A Agustina tinha nalguns romances aquilo que tecnicamente se chama "roman à clef". É um termo técnico dos estudos literários que se refere a romances modelados em pessoas reais. Neste caso é um romance em que as duas personagens são Teixeira de Pascoaes, que é a personagem central, e Fernando Pessoa, que também aparece como personagem e é muito importante.

Quando este romance foi publicado, em 1958, o irmão mais novo de Teixeira de Pascoaes escreveu uma carta aberta a Agustina dizendo que o que ela tinha feito era insultuoso. Achava que a descrição sobre Teixeira de Pascoaes era agressiva. Mas, além de ser um grande romance de Agustina, o grande interesse está também nessa descrição da relação entre o Pascoaes e Pessoa. Em 1955, Agustina não dispõe ainda de muitos textos de Pessoa, ainda eram inéditos e só viriam a ser publicados depois, mas percebeu, ou teve a intuição - e são intuições que ela tem muitas vezes e que são intuições de génio de perceber coisas muito profundas na base de uma evidência muito reduzida - , que a relação para o Pessoa de 1914, quando aparecem os heterónimos, era com o Pascoaes, que reconhecia nela a figura central na literatura do seu tempo. Isto é muito interessante, porque na admiração que tem por um e por outro, Agustina não hesita. Sempre considerou Pascoaes o mais interessante autor português do século XX e “O Susto” dá expressão a esta relação de um modo muito profundo.

Na altura em que ela teve essa polémica com o irmão mais novo do Pascoaes estava em correspondência com outro autor português, também muito importante e pouco falado - o José Régio. A certa altura, numa dessas cartas ele acha que ela se excedeu e que foi um bocado cruel. De facto ela entra nessa polémica porque respondeu à carta aberta do irmão de Pascoaes dizendo: "Se alguém se meter com a sua família assente-lhe duas bordoadas mas comigo e com as minhas personagens não se meta porque eu os corneio".

Esta reserva do Régio ficou nela. Muitos anos mais tarde, em 1992, ela vai escrever um romance, que também é um "roman à clef", em que aqui o protagonista é o Régio, onde ela ajusta contas com ele, porque, justamente, ela tinha considerado esta reserva como uma quebra de lealdade. Tudo isto é estranho e interessante porque também considera Régio um autor maior.

Tipicamente em Agustina, a relação é sempre muito ambivalente. Ao mesmo tempo que é admirativa também é agressiva. E por vezes dá expressão a essa agressividade de um modo muito forte.

O mundo destas personagens de Agustina é um mundo em que as pessoas são vítimas funcionais das suas paixões. Não é a razão que domina as relações humanas. As pessoas são todas agitadas por acontecimentos passionais, libidinais. Há um aspeto da Agustina que penso que nunca foi suficientemente notado: ela foi uma leitora muito continuada de Freud. Mas de um Freud mais áspero e desconfortável, que descreve as pessoas como vítimas desses instintos passionais e cegos que ela tão bem descreve. Isto casa bem com um pessimismo católico que ela têm em relação aos humanos, que são todos resultado da queda e da expulsão do paraíso. O que ela admira muitas vezes são personagens com estas perversões das criaturas que ela descreve com um génio extraordinário e que têm aquilo que ela chama de "virtude de naturalidade" e que vivem dentro das instituições mas de um modo anárquico. O que aliás é o caso dela.

O mundo da cultura, do ponto de vista dela, é o mundo da existência corrente. Um mundo que está saturado de pessoas vulgares, normais. Isto é o que também faz o brilho dos romances e os torna muito ricos. São romances saturados do que é o mundo contingente, empírico e vulgar, de paixões vulgares e ao mesmo tempo esse mundo todo, também saturado por ela, Agustina, que era realmente uma pessoa de grande erudição. Tudo entra. Desde Freud a Kierkegaard às criadas de servir ou aos assassinatos de aldeia. Para ela tudo é contínuo e faz parte da mesma existência.

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