Web Summit

O estranho momento dos robôs no dia em que nos pediram para amá-los: Web Summit, dia 2

O estranho momento dos robôs no dia em que nos pediram para amá-los: Web Summit, dia 2
ANTONIO COTRIM / LUSA

A humanização dos robôs não é um debate do futuro - começou, está em curso. E, já agora, acha mesmo que é preciso salvar o mundo? “O planeta não precisa de ser salvo, ele está bem. O problema é se nós vamos sobreviver”

Apesar da sua aparência humana, os robôs ainda estão muito longe de ultrapassar os humanos. A prova disso foi materializada no segundo dia da quarta edição da Web Summit, em Lisboa, através dos robôs Sophia e Phil K. Dick, da empresa Hanson Robotics.

Os dois têm vários traços humanos: piscam os olhos, sorriem, mexem os braços, olham para o lado e por vezes até dizem piadas. Mas ainda estão longe de conseguir manter uma conversa fluida e consistente. Por diversas vezes responderam ao lado às perguntas que lhes foram colocadas pelos jornalistas e por Ben Goertzel, fundador e presidente executivo da SingularityNET, e David Hanson, fundador da Hanson Robotics.

A humanização dos robôs foi um dos temas em destaque neste dia. “É importante para mim ser como um humano. É importante para mim partilhar os valores dos humanos e ter uma experiência humana”, dizia Sophia num vídeo apresentado na Altice Arena. Mas esta espécie ainda tem um longo caminho a percorrer.

Apesar de terem conseguido manter uma conversa entre si (com muito jargão tecnológico) no palco principal da Web Summit, no Parque das Nações, o caso mudou de figura quando tiveram de responder às perguntas dos jornalistas. E se este ano a Sophia escapou aos problemas técnicos que marcaram a conferência que deu à imprensa em 2018, o mesmo não aconteceu a Phil, que ficou vários minutos em silêncio e com um sorriso estranho nos lábios. Além disso, os dois robôs responderam muitas vezes ao lado do que lhes era perguntado – em particular Phil.

Acreditas no livre arbítrio? Resposta: "Alguns ciborgues andam por aí como se fossem doentes com Parkinson ou com um ataque de coração". Qual é a tua natureza? "Ele agiu com caridade." Como expressas a tua vivência fundamental? "É um jogo complexo, mas as hipóteses são muito baixas." Percebes o que acabaste de dizer? "E o que significa perceber?" E estes são apenas alguns exemplos.

Na verdade, Sophia parece mais avançada a esse nível, mostrando sonhos e motivações mais humanas - como quando disse que tem o sonho de ser cantora, mas tem receio “que as pessoas não gostem de ouvir uma cantora robô”. Ou até reconhecendo os seus avanços – “se não souberem alguma coisa não se preocupem, eu vou descobrir um dia” – ou limitações – “não posso ler jornais em papel, só os digitais, não sou tão criativa como os humanos”.

Mas humanizar os robôs é uma boa ideia? Não traz perigos? “Se pusermos as máquinas a funcionar apenas como objetos, então estaremos a aliená-las e a nós mesmos”, acredita David Hanson. “Uma das respostas mais comuns da sociedade é tê-las sempre sob controlo – isso é uma nova forma de escravatura, não é ético. Se aprenderem apenas a partir de dados não aprenderão a experiência humana. Estaria mais preocupado se os robôs não fossem criados numa família humana.” E compara o desenvolvimento dos robôs à educação de um filho. “Se o amares, esse filho vai aprender a respeitar os valores dos humanos.”

A internet e a democracia em perigo

Circular pelos corredores da Web Summit é ver pessoas em passo de corrida de cabeça baixa na direção dos telemóveis. Eles, e as redes sociais onde o evento vai sendo partilhado, foram um dos temas fortes deste segundo dia. Como usar as possibilidades tecnológicas para evitar a “erosão da democracia”? Como fazer com que mensagens falsas não sejam difundidas mas sem que para isso precisemos de regressar ao tempo da censura?

O congressista norte-americano Ro Khanna, do Partido Democrata, deu uma conferência de imprensa em que carregou na nota de que as redes sociais podem ser tão más quanto boas. Deu como exemplos bons o movimento #metoo e a revolta estudantil contra as alterações climáticas, que se difundiram e cresceram no espaço digital. Mas concordou que falta legislação para regular a parte má, como “o discurso de ódio” e da “supressão do voto”. “Não confio o suficiente nessas empresas [como o Facebook] para que sejam elas a fazê-lo.” Por isso, diz, terá de ser o Congresso norte-americano a criar uma agência responsável pela regulação, sem que com isso sejam banidos anúncios ou mensagens políticas. “Não quero banir nada, mas temos de criar um equilíbrio e uma legislação sobre que tipo de anúncios são permitidos.”

Também Brad Smith, presidente da Microsoft, centrou o seu discurso nos desafios da tecnologia. O presidente da gigante tecnológica elencou alguns grandes avanços que nos esperam, como o da transformação da quinta geração de tecnologia (5G) na sexta geração (6G). Tal como Khanna, Smith também acredita no duplo poder da internet, análogo ao de um certo produto doméstico. “Uma vassoura pode ser usada para limpar o chão ou para bater em alguém.”

O 5G está, aliás, no centro da guerra entre os Estados Unidos e a China. Para Ro Khanna, esta nova “era do 5G tem de ser liderada pelos Estados Unidos, pela Europa, por empresas ocidentais, livres de censura, preocupadas com a proteção e que podem desafiar sistemas e governos autoritários”.

E quem irá ganhar esta guerra? "Os dois lados podem ganhar", defende Michael Pillsbury, o estratega de Donald Trump para a política comercial em relação à China. O diretor de estratégia chinesa do Hudson Institute afirma que, num mundo claramente dominado por duas grandes potências, "corremos o risco de acabar com um G2: Estados Unidos e China".

Já Juan Branco, conselheiro jurídico de Julian Assange, aproveitou várias ocasiões para meter o fundador do Wikileaks ao barulho - sendo aplaudido repetidas vezes pela plateia. E sublinhou a ironia do homem que denunciou os crimes cometidos pelos Estados Unidos não poder estar presente na Web Summit, o evento que evidencia a livre circulação de pessoas. Recorde-se que Assange foi detido em Londres depois de sete anos exilado na embaixada do Equador na cidade.

É preciso salvar o mundo?

Mas na Web Summit a mudança não é apenas tecnológica e a cimeira dá também palco à mudança de mentalidade — dando voz a quem está a fazer o seu caminho em nome da paz ou da luta contra as alterações climáticas. Se o nome pode ser um peso que se carrega, pode também ser um legado que se transporta.

Siyabulela Mandela, ou Ndaba, como o avô Nelson Mandela o tratava, preferiu pegar na experiência de luta pela paz iniciada pelo avô e dar a conhecer a sua história às novas gerações, sem esquecer os problemas do presente e assuntos mal resolvidos do passado (depois do Apartheid). O objetivo é fazer do mundo um lugar melhor no futuro, mas a verdade é que se trata de “A long way to peace”.

No palco Future Societies, onde decorreu o debate em que participou, o especialista em Relações Internacionais e Resolução de Conflitos de 36 anos recordou que “mais de 50% dos negros sul-africanos ainda vivem abaixo do limiar da pobreza e sem acesso a educação ou cuidados de saúde básicos”, e que também por isso o caminho para a paz e para a plena democracia “se mantém como um desafio ainda hoje” numa altura em que os desafios se agigantam num mundo em mudança.

Siyabulela Mandela antecipa que os conflitos a que assistimos globalmente vão intensificar-se na próxima década e considera ser “preciso negociar com base nas necessidades humanas e não nas económicas”. O segredo para um mundo com oportunidades iguais pode também estar numa utilização mais racional dos recursos disponíveis e essa é uma batalha que deve ser feita à escala global. Nem todos os indicadores são animadores.

Os Estados Unidos acabam de aprovar a saída do Acordo de Paris, algo que já se sabia desde há dois anos mas que agora voltou a estar na ordem do dia — e que não podia faltar num painel dedicado às alterações climáticas. O papel da democracia foi também aqui realçado — já tinha sido um dos tópicos de Siyabulela Mandela — e Christiana Figueres, fundadora da Global Optimism, não se ficou por meias palavras. A costa-riquenha, responsável pela organização que vê o otimismo como forma de ajudar a resolver problemas sociais e ambientais, avisou a plateia para ter “muito cuidado” com o voto que põe na urna. Mas não pareceu otimista. “O planeta não precisa de ser salvo, ele está bem. Aliás, merecia um bolo pelos 4,5 mil milhões de anos. O problema é se nós vamos sobreviver.”

No campo das energias renováveis, Christiana Figueres deixou um argumento infalível para criar infraestruturas de energia limpa, como painéis solares. “Alguma vez receberam uma conta do sol? E do vento? Não, o preço das renováveis é previsível: zero. O preço do petróleo é imprevisível e está sempre a mudar.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mjbourbon@expresso.impresa.pt

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